COTIDIANO (CRONICA)

 
 Acordou cansado, sonhara estar pescando um peixe grande logo ali no riacho Cascalho, peixe desses que daria gosto passar por mentiroso  caso tivesse conseguido tira-lo da agua, mesmo em sonho. Quando estava quase conseguindo o celular o despertou na horinha certa do alarme com uma musiquinha infame muito atual,  sua mulher insistia sempre em colocar em  seu aparelho uma “da hora” para mantê-lo sempre a frente  dos amigos e companheiros de serviço, cujos celulares anda estavam no trim, trim, zumbido, fom fom,  os mais adiantados na Alicia Key, nada do Zé Henrique e Gabriel, Gustavo Lima, Michel Teló, Latino, a fila anda. Olhou para a esposa, ainda muito gata num baby-doll muito sexy, cabelos em desalinho, lábios entreabertos, sentiu a ferroada do desejo mas conteve-se. O encarregado de sua seção era um chato de galocha  capaz de dar-lhe um “gancho” caso chegasse atrasado, atestado nem pensar, era lá homem disso?  Vestiu-se vagarosamente sem desgrudar o olho da mulher, pensando em pedir mudança de turno só para acordar e ter tempo para ela,  calçou o sapatão ferrado, tomou um café de ontem a noite feito especialmente para não perder tempo de manhã, foi ao quarto do Gustavinho, unigênito, passou a mão pelo seu cabelinho de manga espada chupada, puxara a mãe, lourinho, afagou o rostinho do garoto, teve a impressão de estar um pouco quente. Puxa, pensou, quando voltar vou levar a bicicletinha dele para consertar, olhou a própria  pele, rude e  morena, ficou admirado de ser pai de uma criatura tão mimosa quanto o filhinho. Quando saia pelo portão escutou a buzina do ônibus dobrando a esquina para apanha-lo. Não deixou de ouvir a brincadeira chata costumeira  de um colega: - Tá pensado que é só ficar no bem bom, é? Não respondeu.
Dia de ajudante geral já diz tudo. Geralmente é solicitado para fazer trabalhos ou prestar auxilio em tudo quanto é seção, até na espirita. Tudo eu, tudo eu, por  vezes desabafa. Tem que tirar o gato morto do telhado, descarregar barras de ferro, empilhar tijolo baiano, jogar ferro velho no caminhão, levar o lixo para fora, varrer o barracão, dar milho aos pombos, chama o ajudante geral, pau para toda obra. Essa era sua vida.
Dez minutos para a hora da saída, começou a alegrar-se, daria tempo para levar a bicicletinha do Gustavinho no Tonho mas, de repente, a má noticia: O caminhão de defensivos tombara, era necessário juntar os galões  que sobraram, represar o veneno derramado para que não atingisse o córrego, recolher os recipientes danificados, um montão de afazeres e lá foi, ele e um punhado de ajudantes gerais para dar conta do recado devidamente orientados por um agrônomo e um encarregado, ambos flores que não se cheira.
Voltou para casa em petição de miséria, encontrou a esposa estatelada no sofá transformada em pó de traque. Um dia daqueles de lavar e passar roupa, limpeza de casa, limpar a teias de aranha, levara o Gustavinho a Unidade Básica de Saude, tivera febre como ele havia cismado de manhã porem nada demais, apenas um resfriadinho, isso no dizer do medico de plantão, não havia pediatra. O garotinho reclamou da bicicletinha e ele constrangido alegou que a bicicletaria do Tonho já tinha fechado o que fez o pequeno dizer um “- O Tonho num abe mais, pai?”, que dor!
A noite avançou, jantou o típico arroz e feijão com berinjela a milanesa, sua mulher  teimava assistir a novela das nove, não dava, o som de carros de propaganda eleitoral com o alarido de vote neu e eleja o Zebedeu pesteava  os ares e o som da velha tv  não tinha decibéis para competir com o estrondo do aparelhamento dos candidatos. Desanimada  foi para a cama e desmaiou de cansaço.
Ele resistiu um pouco. Preparou o café, deu uma olhada na tv e  resolveu dormir, estava pregado mas mesmo assim  pensou chamar a esposa, desistiu, seria injusto com ela, puxa tão  cansada, languidamente estendida com a mesma roupa convidativa da manhã.
Vestiu um calção velho e voltou a cozinha para tomar um  café. Voltando ao quarto puxou o travesseiro, o sono fugira. Não ligaria o rádio, podia acordar a bela, colocou o fone de ouvido e conectou ao celular.
De uma emissora qualquer vinha a musica do Pato Fu:-...tomo um café, um guaraná, prá me animar/mas ficou tão tarde que é melhor deixar pra lá/Quando penso em nós dois, deixo tudo prá depois/ Quando penso em nos três/fica pra outra vez.
Não pode deixar de rir. Sua esposa, madornando, conseguiu perguntar:
- Que foi?
- Nada, respondeu, dorme amor...
Foi o que ela fez.
 
 

 

BUENO
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