O PRIMEIRO AMOR ( conto )

O PRIMEIRO AMOR  ( conto )

 


Como tudo começou não lembrava, apenas tinha a impressão de ter galgado o céu das fantasias e o inferno das inquietações, trocando suas singelas certezas por cruciantes dúvidas, sua paz pelo tumulto íntimo. Como uma revolução interior, doendo, machucando, transformando sua visão de vida, usos e costumes.

Morador de cidade pequena, com uma única grande avenida, com pistas duplas, unindo os extremos da cidadela, onde todos os moradores se encontravam várias vezes no dia, na praça, igreja, escola, cinema, mercado..

Não se percebeu quando seus olhos começaram a ver além das inocências infantis, povoando seu mundinho de uma estrela, fada, ou algo assim, fantástico. Estava apaixonado, sensação nova, estranha, inédita àquele coração infanto juvenil, incipiente nas artes só reservada aos adultos.

 Fato é que já sentia emoções não tão inocentes assim, despertava para desejos inconfessáveis, a puberdade se prenunciava, nos pelos pubianos, acnes no rosto, curiosidades masculinas despertando no garoto, metamorfose operando entre duas estações da existência.

A razão de suas atenções repousava em uma garota, uma amiga. Bastava avistá-la à distância para ter tremores, aquela figura feminina trazia-lhe desconhecidas emoções. Começou a se observar melhor, a cuidar de si mesmo, passando algum tempo ao espelho, lamentando suas espinhas predominantes no rosto imberbe. Escovava com mais atenção os dentes, asseio nos cabelos, capricho no penteado. Percebia-se desengonçado, queria ter uma certa postura, elegância na aparência. Preocupações que despontavam, incômodas, tirando-lhe o sossego.

Justo ele que nunca se incomodara muito consigo mesmo. Bastava chegar da escola, colocar o calção de elásticos, desnudo o dorso, descalço, a curtir a sua liberdade e a brincar com os amigos, sem preocupações como se apresentava, ou como o viam. O mundo era mais fácil, bastava viver a vida. Porém aquelas inquietações exigiam demais dele, reclamavam cuidados, descobria a vaidade  Parecia pirraça, justo ele que fazia troça dos almofadinhas sempre bem vestidos, ele tão pouco se cuidava, chegava com os cadernos, comia alguma coisa e saia. Tudo isso antes, agora, começava a se notar, questionando-se, cobrando-se com a sua aparência.

O desespero o visitava ao vê-la em companhia de outro menino, como padecia, torturava-se, apresentava-se ao mais impertinente dos sentimentos, os ciúmes. Ao estabelecer diálogos com a amiga, amada secreta, forçava para disfarçar seus ímpetos e intenções, contidos na timidez ruborizando as faces. Será que ela desconfiava, saberia nestes momentos o mal que lhe fazia ?  Longe, queria vê-la, mas perto não sabia como agir. Diante a ela, a si se esquecia, esmerando em cortesias, fazendo de tudo para agradá-la, solícito e vassalo diante a sua rainha .Que suplício o martirizava, arrancou-lhe a inocência e a paz, a maldizia por isso, amando-a, numa confusão de sentimentos, atrapalhando-se.

 Vontade tinha de esquecê-la e retornar à  liberdade de seus calções de elásticos, das tardes inteiras para se distrair, caçando, nadando no pequeno rio, jogando bola. Lamentava restringir-se abandonando o seu viver pacato, moleque, descontraído, do andar destratado e cômodo. Contudo, algo sinalizava de que já não era o mesmo, aquelas infantis atividades pareciam coisas do passado.

Aquela pequena e querida criatura não desconfiava de suas dores, recalcando anônimo sentimento. Sentiria ela seus embaraços, na timidez muda, inconfessa angústia no peito a transbordar de fervor ?.  Queria fugir e ficar ao mesmo tempo, ali estar não estando. Não sabia onde colocar as mãos, mal sustinha -se nas pernas, o sorriso amarelo nos lábios e o olhar flamejante, pronto a denunciá-lo, contido em disfarçadas atitudes atrapalhadas.

 Não sabia no que ia dar aquela comoção experimentada, sofria como jamais pensara ser possível. Dor presente na alma, não diagnosticada no corpo, arrepios e tremores, suspiros inopinados, suores nas têmporas, parecia possuído por outro ser a importuná-lo. Se aquilo fosse o amor, antes não tê-lo conhecido, jamais.

Os seus olhos a perseguiam em todos os lugares. Na missa de domingo, no recreio da escola, no cinema, sentado em poltrona próxima sem coragem de se manifestar. Aquilo tudo chegava às raias da loucura. Certa feita, na procissão, onde todos tomavam parte, seja acompanhando o séquito religioso ou assistindo nas calçadas, ao vê-la, distraído, os olhos fixos, carregando uma vela acesa, quase ateou fogo no véu de uma filha de Maria, que ia a frente.

No anseio de encontrá-la, aprontava-se, mantendo lustrado o único par de sapatos, para o simples deleite de admirá-la, amando-a em silêncio.
Como aquilo era sofrido, tornava-se taciturno, arredio aos amigos, sem coragem de confessar o que sentia, até, talvez, por não saber exatamente o que acontecia consigo.

 Um dia mudou-se da cidade, acompanhando a família. A imagem da amada o perseguiu em saudades. Com o tempo, tantas convivências com o sexo oposto, lembranças boas e más, aprendizados, aventuras louváveis ou amargas, experiências, mas sempre retornando à lembrança aquele amor menino, tão meigo e tão dolorido...

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** Publicado em livro em antologia de contos, editora CBJE, Rio de Janeiro, RJ.