Na porta da catedral, preguei meu memorial...

Quem se importa? Quem atenta pra biografia trabalhada em poesia de um joão-ninguém? "Não inventa", disse alguém que assistia com desdém, "nesse mundo o que mais tem é leitor de parecer: cara de conteúdo, alfabetizado, sem saber ler!" Mas o grito mudo já estava dito e pregado, afinal...
Na porta da catedral...

Passou um cego de alma, e enxergou seu próprio trauma: a folha em branco, intocada. Deu um solavanco na porta, e bradou com violência: "Que poesia que nada! Isso é silêncio!" E seguiu sem cadência, aos tropeços, achando que via (e que lia)... O protesto continuava igual...
Na porta da catedral...

"Detesto perda de tempo", falou o apressado. "Estou atrasado prum evento (não me pergunte do que): você acha que eu vou ler?" Alguém ia até responder, mas ele tinha ido embora, preocupado com a hora, com o agora... (Ele não sabia que o tempo pára e o coração dispara quando você lê poesia! Não eram só versos: era outro universo; era um portal dimensional!)
Na porta da catedral...

Parou um distraído, olhando alheio, sem atenção. Tendo lido um pedaço lá do meio, julgou aquela porção "um cansaço tremendo sem pé nem cabeça", e seguiu seu passo sem receio, sem botar fé que o poema mereça sequer ser lido até o final. Julgamento imperfeito e parcial, mas um seu direito legal...
Na porta da catedral...

Uma criança espoleta achou graça na junção de letras sem razão. Foi rindo gostoso daquela dança de sinais, em ignorância de qualquer que seja o sentido que façam tais inscrições intelectuais. E correu a infância, sem preocupações, sem interpretações, na pureza natural...
Na porta da catedral...

Vossa Realeza, altiva, parou a comitiva real, desceu da carruagem, leu a imagem ignorando a mensagem, aumentou um real (ou dois) na verba cultural (miragem? lavagem?), depois deu um grito selvagem, bonito, com gosto: "É carnavaaaaaaal! (Mas continuem pagando o imposto real...)"
Na porta da catedral...

Muitos verões se passaram, e as multidões ignoraram aquela poesia na porta do templo. Um dia, contudo, perdido no tempo, o profeta a encontrou. Mudo, cessou sua peregrinação, sentou-se no chão e contemplou a obra completa, sem sobra nem falta, nem baixa nem alta, certeira! "Tudo se encaixa!", comentou. De maneira direta, se aproximou da igreja, segurou a folha, murmurando: "Assim seja, não há escolha..." E a despedaçou, num gesto brutal. Balançando sozinha, restou ali a linha inicial, versando, surreal:
"Na porta da catedral"...

"Porque o resto era trivial", riu-se o profeta, "mas aqui há verdade total: cada qual compõe seu final; nossa única certeza atual é a grandeza sobrenatural desse local:
A porta da catedral!"