A B S O L V I Ç Ã 0 ( CONTO )

A B S O L V I Ç Ã 0   ( CONTO )

 

Naquela efeméride funesta, compareceram muitos. Por diferentes razões ladeavam o cadáver, ornado com as flores a rodearem-no, emprestando um solene ar de despedidas ao defunto.  Aparência estranhamente angelical, maquiado, cercado de lírios brancos, antes recordando uma criança inocente  e não a um adulto na meia idade. Quatro grandes velas, em chamas bruxuleantes, erguidas em castiçais de metal, delimitavam as extremidades do ataúde. À cabeceira, a imagem com um Cristo Crucificado, como se olhando o inerte corpo velado, esperando-o de braços abertos. 


Na imperturbável calma ambiente, cada qual trazia seus pensamentos para com o homenageado. Raras lágrimas verídicas verificavam-se. Contudo, guardavam respeitoso silêncio. Se as mentes, todavia, fossem ouvidas abertamente, por certo as impressões não seriam as mais recomendáveis, mas, na hipocrisia da mudez, compunham um cenário apropriado para o evento.


Cada qual mergulhado em suas cogitações, só propícias nestas ocasiões em que a efemeridade da existência e das ilusões ficam latentes no íntimo de todos. Diferentemente das alacridades de qualquer festa, das inúmeras patrocinadas pelo então anfitrião, aqueles momentos convidavam, compulsoriamente, às reflexões menos levianas.


Nenhum comentário ouvia-se, as pessoas traziam vestes sóbrias, aparentemente enlutadas. Nas feições  denotavam recolhimento, como se estivessem em secretas orações. Cada um no inescrutável de seus recônditos íntimos analisavam livremente o sucedido, nem sempre amáveis ou tolerantes.


No segredo de cada consciência, reviviam-se cenas onde o morto, vivíssimo, se movia, em atitudes imponentes e reprováveis, sendo julgado naqueles momentos, onde a ira da incompreensão,  sem censuras e testemunhas, cobrava ajustes e acertos, além da compaixão humana.


Ora avultava o inescrupuloso e frio capitalista, onde o lucro era sempre a meta, não importando os fins. Ou o renegado bastardo, reconhecido à força da lei, reivindicando parte na fortuna legada. Mulheres enlutadas, além da esposa oficial, diversas outras ocultas, muitas consorciadas ainda com seus esposos ali presentes ao funeral, traziam lembranças de aventuras inesquecíveis com o féretro velado, boa vida e generoso com as amantes.  Os filhos, displicentes, pareciam cumprir uma encenação ensaiada, onde tinham que manter a postura de recato e discrições.
A cônjuge, aparentando equilíbrio, ereta, parecia vagar em reminiscências distantes, o véu leve e escuro, retratando os pêsames vivenciados.  
A mãe do falecido era a exceção, realmente lamentava em breves soluços, a ausência do filho.
Cumpriam à risca o figurino desenhado para a ocasião, como se aguardassem, pacientemente, o passar das horas para o sepultamento, e livrarem-se dos incômodos daquela cerimônia fúnebre. 

Muitos não arredavam o pé dali, antes, pareciam fazer questão de demonstrar consternação pelo velório de um suposto amigo. Na vaidade da ostentação significando os privilégios do gozo da intimidade de importante homem da sociedade, interesse almejado pela maioria dos presentes.

Orações foram ouvidas, apenas com a regência do padre, especialmente convidado para a missa de corpo presente, ainda assim repetidas palavras, desprovidas de real emoção ou devoção.

 

Se pobre fosse o legado material, por certo gozaria o despedido de raras lembranças. Ao pó veio e ao pó retornaria, esquecido simplesmente. Pelo menos não ouviria nos recessos de sua memória imortal, as zombarias e maldições dos que ficavam. Raras defesas, isentas de vantagens, a advogarem a sua passagem. No mais, figurava como um homem ardiloso, sagaz e nada escrupuloso em suas ambições de dinheiro e poder, não conhecendo limites  e valores éticos.

O estar ali, no meio das atenções, diverso de uma manifestação de solidariedade e respeito,  figurava-se no centro de um tribunal em julgamentos, onde as mentes, gozando o benefício do sigilo, arbitravam penas pesadas, já que a justiça terrena, por compadrios e influências, o livraram de qualquer condenação.

 

Nada como o tempo passado, a esmaecer biografias carregadas. Honrarias e discursos encomendados ao sabor do protocolo das conveniências. Últimos atos encenados no palco da efêmera vida, de acordo com os usos e costumes, aquinhoados  em moeda corrente.

 

Enterrado o corpo, os despojos no ritual da despedida, como notícia envelhecida, a vida continua para os que ficam, para os que vão, resta o ostracismo das vagas recordações. Para o falecido, os enganos de sua trilha, absolvidos, relevados, amortecidos no esquecimento. Anistia recebida pelo desprezo, não por méritos e reconhecimentos, mas pela ausência definitiva.

Águas passadas, esmaecidas as memórias, resta na lápide a imagem santificada. De fraca e pecadora, só menções boas, cada vez menos real, até cair em vagas lembranças, ressuscitadas em mito santo, a figura de carne e de vícios...

Morta, por fim, a face humana.  

 

TEXTO SELECIONADO PARA FIGURAR NA ANTOLOGIA CONTOS DO FIM DO MUNDO, EDITORA CBJE, RIO DE JANEIRO/RJ, AGOSTO 2011

** Publicado em livro em antologia de contos, editora CBJE, Rio de Janeiro, RJ.