VIDAS EMPENHORADAS ( CONTO)

VIDAS EMPENHORADAS ( CONTO)

Dos passos dados os mais longos foram no sentido da entrada ao balcão

Informado pelo atendente, deixou seu nome e sentou-se em uma poltrona, ao fundo da sala, onde também outros aguardavam a sua vez de serem atendidos.

Nas mãos trêmulas o estojo precioso, arquivo de recordações, de inestimável valor sentimental.Tinha uma decoração de simples ornado, apertava docemente a pequena caixa, como se a acariciasse, feito um parente que vai viajar e que, antecipadamente, já sentisse a ausência.

 Revia-se enamorado trocando alianças naquele inolvidável dia em que os marcaram para sempre, ali estava o par de anéis esponsalícios ,retirado com cuidado do dedo da amada, pretextando recomendações médicas.Fitando o par de alianças rememorava como estavam felizes naquela data em que o mundo parecia feito exclusivamente para eles.

A mente viajava em espirais que o fazia reaver os passos que o guiaram até ali. Os olhos nublavam.
- É grave, doutor ?
- É sempre preocupante, mas se consegue tratamento.

Casado há exatos 50 anos, a companheira passou a manifestar sintomas, caroço no seio, tumor maligno, encarecia ser extirpado o quanto antes, ablação urgente.. A internação seria imediata, pelo sistema público de saúde, mas haveria outras despesas, as viagens da pequena cidade até a capital e a hospedagem,.
Olharam-se amuados e cúmplices, as mãos enrugadas apertadas como se pedindo socorro um ao outro. Tantas expressões nos olhares que sabiam se comunicar sem pronunciar palavras. A idéia de se separarem doía mais que a cirurgia inevitável. Ela ficara internada, ele viu-se só a ter que tomar as decisões.

Casal idoso, sem filhos.  A velha casa, herança dos pais dele, era o teto que os acolhia e viviam como pássaros felizes naquele ninho. A aposentadoria de ambos, dois salários mínimos, dava para as despesas mais imediatas, jamais para aquela inusitada situação..

Na caixa acalentada nas mãos, trazia lembranças que se reportavam às histórias daquelas  vidas, de suas mocidades, namoro e, por fim, o longevo casamento. Eram como os retratos na parede da sala, deles e dos antepassados. Cada conquista uma lembrança através de um mimo, um par de brincos, um anel, as alianças benzidas na capela pelo pároco, um pingente deixado no leito de morte pela saudosa mãe, ali estavam suas vidas, suas memórias. Havia o terço em pedrinhas semipreciosas com o crucifixo em ouro dezoito, um broche com pequenos estilhaços de rubi, e até um dente de ouro, que já tinha sido moda em outros tempos, preservado como relíquia.
Aguardava o atendimento, opresso pela inevitável separação. Nem supunha o valor que lhe pagariam por aquelas preciosidades de uma vida inteira, retalhos de  épocas, tempos felizes... Mas se aquilo poderia significar a recuperação da saúde da companheira, então tudo faria sentido... vão se os anéis, ficam os dedos, esboçou um sorriso amarelo ao lembrar-se do ditado popular. Percebera  que deixara de sorrir desde que o infausto os visitou. Sentiu um certo alívio com aquele gesto imprevisto, um riso, que jamais se permitiu desde então.

- Hildebrando Marques  - anunciou o atendente.
- Sou eu, levantou-se vagarosamente, apertando entre as mãos o pequeno baú.
O homem, gentil mas econômico nas palavras,meio calvo, utilizando-se de uma lente grossa, fazia silêncio e olhava detidamente cada peça, segura por uma pinça, como se vasculhasse detalhes...
- São originais... falou  em sussurro o vendedor ansioso, sentado em uma cadeira junto à mesa do avaliador. Parecia defender seus pertences da aparente desconfiança daquele estranho e quieto observador.
Com um aceno de cabeça, imerso em suas pesquisas, parecia concordar com a inusitada manifestação do velho.
- São originais sim, senhor, mas de pouco valor. Exceto o broche e as alianças,  as demais peças não representam muito...
- Não ? Susteve a respiração como se estivesse ofendido...São nossas riquezas.
- Entendo, senhor, têm o seu valor sentimental. O que quis dizer  é que não são metais nobres, de valor pecuniário relevantes, compreende ?
Um suor frio brotava da testa do ancião, um medo de que suas esperanças fossem infundadas.
-  Isso quer dizer o quê, meu senhor ?
- Lamento, mas apenas o broche e o par de alianças possuem algum interesse para a penhora. O broche por estar intacto e ter um desenho raro, as alianças por serem de ouro 18, e também por estarem conservadas, apesar dos anos.

Acompanhou em silêncio a separação das peças colocadas cada qual em envelopes pardos, registrados com etiquetas manuscritas pelo avaliador.
 Autômato a vagar até o caixa. Voltava com a pequena caixa, desprovida do broche e das alianças, com uma quantia, muito aquém do  que necessitava.

Dos passos dados os mais resolutos e rápidos foram no sentido da saída.

Sua figura arcada deixou a loja e foi desaparecendo no meio da multidão...

Junto ao corpo, como acalentando um ente querido, protegendo-o, levava a sua  caixinha preciosa, materializavam momentos únicos, ricos em lembranças, uma verdadeira fortuna pessoal, que importava aos demais ?
 

Era a maior riqueza para eles.
 

TEXTO SELECIONADO PARA FIGURAR NA ANTOLOGIA DE CONTOS IMITAÇÃO DA VIDA, EDITORA CBJE, RIO DE JANEIRO, EDIÇÃO JULHO/2010.