REMINISCÊNCIAS OUTONAIS ( CONTO )

REMINISCÊNCIAS OUTONAIS   ( CONTO )



Estranhas aquelas manhãs hibridas, anunciavam-se frias e iam, aos poucos, temperando-se no avançar do dia, algo como verão tardio, vagaroso que dormia até tarde, dando oportunidades para que o incipiente inverno se anunciasse, ainda que tímido. Assim eram aqueles dias outonais, uma mescla de sentimentos, guardados nos refolhos da alma e que despontavam, amiúdes, pela estação intermediária entre o tórrido verão e as temperaturas frias do inverno.
Dizer-se que tinha uma identidade própria era suspeito, se em outras plagas o cair das folhas representava a estação meio, ali, no centro de chão asfáltico, aquilo não se presenciava...
Restavam reminiscências trazidas sempre que a estação se prenunciava. Será que nos íntimos das mentes dos transeuntes que circulavam tais cogitações dessas ordens davam vazão ? Não se saberia, universos ambulantes em suas confidências, o certo é que ali, no recinto dos devaneios ociosos, tais inquietações do espírito faziam-se ouvir, sentir.

Da janela, avistando gentes que trafegavam apressadas em suas rotinas, o
olhar debruçava-se além, como se buscasse, motivado por sensações trazidas, a outros momentos difusos, em retalhos, situações já vividas. Nas gavetas do arquivo íntimo, revisitadas nas oportunidades emotivas, trazidas em lembranças a povoar um mosaico complexo e de nuances, ora lúcidas, por vezes distantes e confusas. O certo é que as sensações visitavam-no, palpáveis, embora indistintas, saborosas como o aroma de frutas típicas, próprias à cada época.
E a realidade presente se distanciava para momentos anteriores, quase que sem domínio próprio... Tratava-se, imperceptíveis aos alheios, uma luta íntensa, íntima, para se firmar âncoras e evitar levitações e ausências, impróprias para o cumprimento das lidas cotidianas, sinalizadas no calendário na inexorabilidade dos ponteiros do relógio e no sinalar da agenda sobre a mesa. Em que sítios visitava sua mente tresloucada ? Não saberia ao certo, apenas aos sopetões de instantâneas lembranças não lineares, como uma narrativa surreal, mas cheia de aromas e sabores, o que a tornava cristalina e quase materializada, embora tudo não fosse uma viagem interior, na ausência de si mesmo, ausente aos fatos e às rotinas...
Incômodas viagens inusitadas trazidas por aqueles dias indefinidos entre duas estações marcantes. Seria a dubiedade, o hibrido, entre duas situações opostas ? Tudo eram cogitações, tão arraigadas e idiossincráticas, que temia partilhá-la com outros, visto sequer saber que enfoque dar ao assunto, tão etéreo, sensível e pessoal...

Ensimesmado, andava nas calçadas como quem mede os próprios passos e ouve a cadência dos sons no atrito dos sapatos sobre o chão,um Ser devaneia em meio à multidão atarefada, assoberbada em si mesma... a tal solidão coletiva, partilhada como membro de uma manada a cumprir o ritual do trajeto comum, ilhados em si mesmos e distantes nas suas intimidades.
O cair da tarde, antecipando a noite, no frescor já verificado no amanhecer, em respingos de uma garoa fina, apressando gentes em suas correrias, trazendo o arsenal de guarda-chuvas enfeitando de cores o passeio público, e a balbúrdia da cidade em sua algaravia de ruídos, estressada no congestionamento quilométrico, os olhos hipnotizados no vaivém do parabrisas, na música solta no rádio fm, acólita das divagações, entremeadas da atenção nas trocas de marchas e movimentos mecânicos para se movimentar o carro enfilerado compulsionariamente no engavetamento.

A noite não tardaria, fresca, insinuante, abreviada na estação que a fazia mais longa.

Cinzentas tardes, onde a mente solta, irriquieta, poeta, devaneia e brinca com a sisudez das aparências, deixando um Ser vagar em si em busca de respostas...








 

TEXTO ESCOLHIDO PARA PUBLICAÇÃO EM LIVRO NA ANTOLOGIA CONTOS DE OUTONO, EDIT CBJE, LANÇAMENTO ABRIL/2010