A psicografia da pós-vida, Breve crônica sobre a morte ou Últimas palavras

 
Hoje será um dia único em minha vida. Um dia de breves palavras, breves acenos, breves olhares. E, por que não, breves sentimentos. Entendo-os. Esqueço-os. Imagino que breve deve ser a aventura. Breves devem ser os sonhos. Breves são os amores. Longa é a saudade dos primeiros tempos.

Minha execução se iniciará em poucos instantes. Raros homens passam por isso. Homens raros entendem o que é isso. E por estar tão só e ter em meu sangue a brevidade dos tristes, preciso falar-lhes: este insólito acontecimento toma-me de assalto junto com um sentimento tão angustiante que me deter neles seria a morte em tempos de morte. E minha incompreensão é aproximável à ira dos que a querem. Por isso aceito os pensamentos dos que a querem.

Privar-me-ão da vida por motivos que, apesar de munidos de imperiosa legalidade, forço-me a não compreender. Se existem merecedores do perecimento prematuro, certamente eu não incluiria os homens neste rol, por demasiada impossibilidade espiritual de ter que aceitar tal sentença. Acho uma grande injustiça eliminar um sistema que tanto esforço faz para manter-se. Seria como queimar uma extensa floresta para a construção de uma estrada. Não se justifica. Imagino que, no mínimo, deve-se respeitar este desígnio natural que impulsiona o tempo. Porque nós somos a medida do tempo. 

Na juventude, marcava hora para namorar, passear, trabalhar. Jamais marquei hora para morrer, viver ou ser feliz. Se não devemos estipular momentos para a felicidade e para a vida, por que devemos marcar nosso fim? Pouco entendo sobre este aparecimento repentino chamado morte, e sei que muitos também não entendem. Portanto, desejosos são os ventos de boa vida a negar-nos tal conhecimento sobre algo tão bem escondido neste imprevisível universo chamado existência.

Todo o corpo pede insistentemente uma resposta, sobretudo o coração, preocupadíssimo por estar prestes a cessar seu dificultoso labor. A pele ocupa-se com as amarras, os olhos com o que poderá vir a ser a sua última visão. Inútil meu desejo de respondê-los. Não saberia. Não gostaria de prestar-lhes uma satisfação. Pobre é o destino deste falível arcabouço.

Como maneira de abrandar meu sofrimento, me foi permitido escolher a forma de minha extinção. Pode parecer irrelevante, mas considerei isso importantíssimo. Desejo ter uma morte suave, melodiosa, pacífica. É o mínimo que posso fazer ao meu coração, à minha pele, aos meus olhos. O líquido fervente e célere posto no corpo repleto será a passagem só de ida para a espiritual paz, enfim tirada das mãos do solerte e descontente destino.

Qual não foi minha surpresa ao saber que poderia fazer três pedidos. No entanto, reduzi meu direito a apenas dois, já que o primeiro deles seria negado, certamente. Então, como segundo desiderato, solicitei ouvir uma música. Não uma qualquer, por mais bela que seja. Quero uma canção que toque o pensamento com tal serenidade que ele permaneça entorpecido até o momento de sua partida para algum lugar que, creio, nem o mais sábio dos mortais poderia vaticinar. Seria uma verdadeira glória viver os últimos minutos como se a morte fosse um inofensivo assopro da garganta da eternidade. Contudo, sei que esta desejada e harmoniosa composição não está disponível aos homens, pois é exclusiva dos anjos. Por este fato, fico com a mais nobre expressão de minha espécie nesta arte: o Hino Nacional do meu país.

Como terceiro desejo, muito pensei e não cheguei a uma decisão satisfatória. Tive várias boas idéias, cada qual com sua natural vontade. Mas decidi-me por uma, pois a morte tem impaciência: quero um forte abraço do meu executor, com direito a divagar alguns segundos antes de desabraçá-lo. E que, após isso, eu tenha uma bela viagem, com direito a brisa no rosto e previsão de chegada, pois tenho pressa em ser feliz.
 
 

Fábio Pedroto
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