OLHAR DA FANTASIA (conto)

OLHAR DA FANTASIA (conto)

 
 
Ao avistar a propriedade dera-se conta do malogro, desiludido por ter se esforçado tanto, adiando compromissos para ter uma folga para visitar aquele lugar, ermo, pobre, deixado em herança por uma velha tia. A irmã de sua mãe o tinha à conta de um filho, que não teve. Casada, não conseguiu engravidar, enviuvando, permaneceu solitária.
 
 Abriu desalentado a mala, buscando conferir através daquela última carta, a descrição do local que herdara, tão diferente do que testemunhava. Aquilo reclamaria tantos cuidados que não estava ao seu alcance, tampouco seria sua prioridade fazer investimentos inesperados, fugindo ao seu orçamento.
 
 O mato reinava sobre toda a extensão do terreno, a casa velha, desprovida de algum conforto, mantinha-se de pé, porém teria, praticamente, de ser reconstruída, dada a precariedade de sua conservação. Pobre tia, vivera reclusa por tantos anos, nunca revelando suas condições, aparentando ser feliz  naquela paragem desértica e esquecida. Sobrevivia da pensão do marido falecido e da aposentadoria de professora do primeiro ciclo escolar.
 
Lendo aquela missiva, cogitava se não estivera a velha parente delirando. A sua narrativa dava conta de um mundo fantasioso, tão diverso da realidade que o esperava. Muito tempo na solidão, provavelmente construíra um universo particular para se refugiar, embora vivesse na penúria daquele sítio abandonado.
 
Poderia entendê-la em sua necessidade de fuga, afinal, amargos seríamos não fosse a visão idealizada e afável, colorindo paisagens áridas e hostis, num verniz suportável. A solidão  a teria feito construir uma outra realidade, vivendo nas minúcias ocultos recantos, tingindo de cores lindas a vida nem sempre bela das mazelas sofridas. Tentativa de ver pelos olhos íntimos, complacentes, as agruras vividas. Formas de se situar na realidade, enfrentando íngremes caminhos, maltratados, nas visões da alma, adocicados, tolerados.
 
Sua mente a teria levado, desatenta, alheia à rotina frugal, com certeza voou, aspirando carícias inexistentes. Maneiras de se conviver consigo mesma, em doce loucura. Visões encantadas, não decifradas, nos matizes invisíveis aos olhares crus da realidade.
 
Habitando aquela propriedade decrépita, isolada, como se fosse um castelo, na leitura única de seu universo, sensações e emoções tão delas, no único recanto a ensejar vida e beleza, o roseiral aprumado. Rosas belas, em cores vivas, em contraste com a natureza morta daquele chão ressequido e triste. Tonalidades sensíveis, naquelas flores, assumindo derivadas cores dos devaneios próprios da florista morta. Sua existência apagada, rediviva em suas criações, adornadas no belo daquelas pétalas exuberantes de afagos aos olhos  de quem as contemplasse.
 
Aquilo trazia às suas cogitações pessoais, inquirições sobre o mistério, das diferenças entre iguais no padrão dos costumes. A descrição maravilhada naquela correspondência, a narrar com minúcias e belezas, o que apenas aos olhos dela existia, além do roseiral, nada confirmava encantos àquele quadro de abandono e desleixo. O belo pode estar no feio, a felicidade no triste e na tela vazia de imagens, o arco Iris, tudo dependendo da referência e da ótica de quem vê.
 
Sentado na varanda, sem saber como agir, dando asas às suas cogitações, tentando buscar razões para entender a tia, possivelmente vivendo nos derradeiros tempos entre duas situações distintas. Ora com os pés no chão das asperezas, noutras, vagando em sintonia com suas necessidades de achar aconchego no onírico dos sonhos.
 
Buscava captar no ar das paredes as sensações impregnadas por sua única moradora, por longos anos. Dado a devaneios, suas ilusões em fixos olhos no infinito, da noite que se avizinhava, com o horizonte decorado por majestoso arrebol, tingindo de um amarelo com tonalidades rubras, demonstrando o dia sob sol inclemente, que se despedia.
 
Os sons da mata passaram a habitar o ambiente, grilos e coaxar de sapos, ou seriam rãs ?, chegavam do brejo próximo ao riacho, com a cantoria de suas águas passando audíveis, quando tudo era silêncio. A lua cheia, por companhia, nimbando de luz prateada ao derredor.
 
Decisões reclamando urgências. A gleba não poderia ficar à deriva, logo poderiam tomar conhecimento do falecimento da dona, do abandono, podendo  ser invadida. Talvez fosse uma solução, abandonar o que não poderia cuidar, deixar a quem viesse contribuir com o seu trabalho, colhendo frutos, tratando a terra, produzindo alimentos. Socializando o que deveria ser de todos.
 
 Oscilava em dúvidas, não querendo menosprezar o legado do qual a tia, com tanta ternura, quisera presenteá-lo. Se fosse para abandonar não teria deixado por escrito sua intenção, passando-lhe seu castelo de sonhos, na crueza da realidade, ultimando providências.
 
Na estrada visualizava crianças, com mochilas rotas às costas, dirigindo-se para a escola municipal, distante três quilômetros. Alguns vinham em lombos de animais, a maioria fazia o trajeto, ida e volta, a pé. Ás vezes suas figuras sumiam na poeira, sempre que passava algum carro.
 
Resoluto, enfim, tinha achado a melhor solução, trazia, além da pequena mala de curta permanência, um ramalhete de rosas, colhidas no roseiral cultivado pela florista sonhadora.
 
Por escrito, lavrava a sua intenção de doar a terra para a construção de uma escola rural, encurtando o caminho dos filhos dos colonos para se educarem, deixando assegurado de que o roseiral seria mantido e cuidado. Por fim, teria o estabelecimento de ensino o nome da professora falecida, como homenagem.
 
À frente do túmulo, depositava as diletas amigas da falecida, retribuindo o zelo, enfeitando a sepultura com a graciosidade e beleza das flores tão queridas por sua tia.
 
 
 
 
 

 
 

*PUBLICADO EM LIVRO NA ANTOLOGIA DE CONTOS DA CBJE, RIO DE JANEIRO-RJ, AGOSTO DE 2012.