Conto -   A Janela.


     Deitada e absorta contemplo minha janela. Vidros transparentes me deixam ver o exterior do dia, da noite, da madrugada. Estou em sintonia com a sua transparência. Nela vejo o infinito do tempo. Vejo o mar, sem molhar meus pés na água. Vejo o trem que vem, que parte, que para na estação. Da janela transparente vejo o meu interior. Vejo meus olhos viajarem por ai. Vejo até a gaivota. Ah! As gaivotas.
       Lavar as palavras através do tato e perguntar como as gaivotas voam. Elas apenas voam por ai, por si. Por mim. Por nós. Voar sempre requer sacrifícios. Voar sempre me lembra leveza, me lembra liberdade.  De repente da janela, sou uma gaivota. Procuro os mistérios da vida lá fora. Vida e morte, natureza e sonhos. Vento e tempestades. Sol e lua.
        Da janela posso chorar sem rumo pelo chão seco. Secar as lágrimas – as lágrimas da noite. Lágrimas das saudades, ou talvez de alguma partida inexistentes. Sentir os olhos marejados da dor. Posso até chorar de emoção, lágrimas que vem do nada.
       Da janela posso sorrir sem compromisso ao ver que estou dentro de um espaço imaginário. Posso lembrar-me de alguém e verter em risos e gargalhadas.
      Projeto as cores do lado de fora para dentro. Emparelho-as ao redor do meu quarto Não tenho tempo para crer que a vida corre lá fora e eu estou no interior do meu interior, indagando como seria se o mundo fosse interpelado pela luz que entra pela janela do meu quarto. Luz azul, luz lilás, fugaz. Sombras que tomam corpo movimentam-se pela fresta dessa janela. Janelas transparentes que até o vento ultrapassa o movimento. Emudeço e tento tatear. Tento o contorno das sombras pretas que se transformam em cores e tons invariáveis. Tentativa inútil, já que a sombra se move em direção ao vazio do meu quarto. Quarto verde e quadrado.
       Faço poesias azuis meio gregoriano, para constatar a emoção de sentir as palavras brotarem dentro de mim. Elas vêm através daquela janela absorta e vazia. São meus gestos chamando, meu corpo clamando, minha vida reincidindo prismas da imagem que vejo do meu quarto verde e quadrado – na janela.
        Se meu corpo fosse um tema eu falava, falava algo inevitável aos desejos que tomam posição de mim para mim. Nada sério, nada que foge o normal do normal. O que torna paranormal. Os espaços que contorno é redondo, cheio de curvas e calor. Mas de que adianta se não tenho voz.  O que adianta a janela se o som do silencio perde-se no eco dos meus murmúrios sem anexo, sem nexos, sem reflexos. Tudo natural, tudo tão frágil, como se o timbre dessa voz pudesse quebrar a qualquer momento a monotonia das cordas vocais. É compreensível o que posso pensar se soltar meus tons sobre os sons que tento delinear olhando a janela. Tento não pensar em nada, além do espetáculo visto de dentro pra fora, de fora para dentro, da janela que debruço. É noite, é dia, faz-se à tarde, confundo-me com o por do sol. Entendo-me como parte integrante de um jogo de luz. Sou partícula fundamental que compõe esse universo da janela e eu. Eu e a janela, nem sei mais qual é a ordem dessa sintonia, mas sei que esse momento é meu. Nem o retrós dos nós que tento dá. Calar-me diante do que vejo! Não sei. É anular meu desejo transitório. Transitório, aleatório, são histórias de uma janela transparente, vista por um  olhar. O meu olhar. Mas é como se eu mergulhasse, nadasse nas profundezas do som.
         Interessei-me pelo meu abismo de rosas. Nada a declarar quanto ao perfume que sinto. Eu apenas venho de um mundo incompleto. Completo com o oásis e absorvo o oceano. Absorvo aquela janela, feito uma aquarela de cores. Feito uma moldura pintada pelos meus sentidos. Fotografadas pelas  mãos do destino.
        Minha mente acaba de parir frases soltas e estrábicas. Concebo um acordo – acordo esse de acordar. Da janela, ouço James Taylor sem importar com nada. Nada é relativo – o que penso agora é exato. Exatamente como deixei antes de partir.  Avistei o tempo frio, senti o calor do quarto quadrado, respirei profundamente e do meu profundo veio uma tempestade de palavras, como se dele brotasse pensamentos. Pensamentos vagos, pensamentos tateados pela noite que avisto da janela... Pensamento claro feito o dia que avisto. Pensamentos cinza, azul, multicores. Pensamentos indefinidos.
         Da janela senti o calor do lado de fora, arrepiei de prazer, não busquei a perfeição do que vejo, mas sinto a imperfeição dos meus dias correrem para o mar. Senti ondas de letras atravessarem o espelho do meu quarto, senti, senti o som cristalino. Senti a janela do lado de fora para dentro e de dentro para fora, me senti. Então alcancei o ritmo do silêncio. Respirei aliviada e a fitei novamente. De repente ela me pareceu muda, quis convencê-la de que o papel dela é separar o infinito do tempo seco para o úmido, do calor para o frio. E ela permaneceu muda, sem pensamentos, implorando que pensassem por ela. Implorando que a fizesse parte de algum mundo que não seja o concreto do quarto quadrado.
        Então eu pensei por ela, fitei a vida lá fora por ela. Partilhei meus pensamentos às vezes pesados, às vezes leves, às vezes indiferentes aos acontecimentos. Pensei como janela. Pensando assim fiquei por um indeterminado tempo parado e forte. Eu dividia o mundo de fora com o mundo de dentro. Então me senti a própria janela. Uma bela e transparente janela.
Soraia
 
 

Um mundo dividido.....Uma janela que separa pensamentos.

no quarto