Descalço

Descalço, acompanho teu sono, e teus sonhos.
Antepassados descrevem árvores genealógicas
Clamam justiça, guardiãs que são de teu descanso.
Guardando todas as portas e janelas.
Estão ali, por tua licença, em convivências de hierarquias eternas.
Silêncio é total e teu sono é profundo:
Estás em outro estado da consciência.
Teu céu interior, paisagens desconhecidas.
Tens parte com os anjos.
Cavalos negros e brancos.
A Terra é lápis-lazúli.
Sonhos perfumados.
À noite, a luz da lua entra pela persiana da janela,
Semeia luar nos teus olhos.
No bidê, um copo com água e uma rosa.
No alto, as estrelas demarcam o céu.
Ao longe, o som das águas de uma cachoeira.
Escuto vozes perdidas, ao longe.
Noite da noite.
Noite imensa.
Estás entregue e a respiração relembra todos os ciclos da vida.
O barulho de trem nos trilhos
O sino de vento se agita e manifesta sinfonia
Os rangidos da madeira da cama já não incomodam
Um acalanto, uma milonga.
Deitada para o lado direito, deixando vislumbrar tuas costas.
Teus pés, ungidos, estão tépidos e tua coberta está quentinha.
Queria estar a teu lado.
Dormir contigo a noite inteira.
Abraçar e ser abraçado.
Minha mão na tua mão, que eu procuro tanto.
Nada que me possa conter e nada é pecado.
Teu corpo é sagrado.
A luminária oriental do lado da cama.
A mobília da casa, a gota que cai do chuveiro;
(Uma hora antes estavas no banho)
Tudo está em ordem, Maat.
Teu castelo interior, com suas paredes, está na fronteira do mundo.
Por onde corre uma brisa suave, do mar adentro, oceano das almas, maresia.
O tom esfumaçado da aurora, perfume de gardênia e da papoula.
O lusco-fusco da manhã, o amadurecimento da luz,
Um barco veleiro se afasta do cais.
É de manhã.
O copo de vinho do poeta japonês.
O celular.
A roupa jogada.
Na cabeceira da cama, o pijama.
No banheiro, teu anel e teu brinco.

Para S. do meu coração e da minha vida.

Bagé, 12 de novembro de 2007

Claudio Antunes Boucinha
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