O SEGREDO DE GERUSA ( conto parte 1)

O SEGREDO DE GERUSA ( conto parte 1)

Quando sentiu o líquido quente escorrer pelas pernas, viu que era sangue, empalideceu, buscou pela mãe, iletrada mas vivida, que a esclareceu, em seu modo tosco, e tal como acreditava. Gerusa tomou conhecimento de que já era uma fêmea com possibilidades de engravidar, os receios nas advertências maternas a deixaram incomodada. Atrás de cada palavra nenhum alento, apenas precauções externadas trazendo junto os traumas vividos pela genitora, assim foram recebidos os conselhos. Inútil florear de que deixava a infância e ingressara na puberdade, as etapas da vida, naquelas condições, não se davam de maneira suave, a hostil vida se apresentava aos solavancos, sendo vivida sem maiores considerações. Assim a assustada menina conhecia-se mulher. Sua beleza brejeira, maltratada mas insinuante, despontava. Era a única filha, tinha dois irmãos maiores, que junto aos pais lavravam a terra, cultivada em regime de parceria com o proprietário; aquilo garantia o sustento familiar, podendo ter algumas criações, como aves e porcos, além de pequena horta. A ela cabia os serviços domésticos, cozinhar e levar a comida aos familiares na roça, inclusive para a própria mãe que ajudava no cultivo. Também era sua incumbência encher a tina de água para as necessidades de higiene e lavar as roupas na beira do rio, o que fazia alguns dias na semana, sempre solitária.

A flor que surgia entre as pedras da vida humilde não passou despercebida pelo dono das terras, a avistá-la de seu cavalo, espreitando-a em seus afazeres, sendo que ela não notava malícias naquele proceder, as terras eram dele, normal, portanto, que cavalgasse por elas, acompanhando os serviços dos lavradores parceiros. Foi entretida na lavagem de roupas, agachada na beira do rio, ouvindo o canto dos pássaros, abordada pelo homem, rente a ela, de supetão e sem condições de reagir à investida. Pressionada contra o peito másculo, quase sem forças para reagir, sentiu as intenções dele, quase a sufocando. O asco de ver-se beijada à força, sem saber esboçar reação, sequer articular palavras ou gritar para fazer-se ouvida. Abatida como uma presa indefesa pelo predador, tendo o corpanzil do agressor devastando sua intimidade, burilando seus mamilos imberbes com sua boca ávida de gozos, depositada e arrastada sobre a relva mais oculta, sentiu-se penetrada e devastada em sua inocência. Em movimentos rápidos, deitada ainda na grama, viu ele levantar-se, afivelando as calças, saindo como se nada tivesse acontecido...
Momentos de pavor e impotência a assomaram, pálida e vacilante, tentando concatenar os pensamentos, dar-se cônscia da situação e de si mesma, buscando vestir-se com as roupas espalhadas, peças íntimas maculadas por sangue coagulado, a serem lavadas e ocultas dos olhos maternos. As lágrimas inundaram seu rosto, soluçando, desprotegida diante a agressão que jamais poderia imaginar. Doía as partes íntimas de seu corpo, parecia sentir ainda o incômodo daqueles momentos a martirizá-la, não conseguindo retirar dos pensamentos as cenas degradantes a que fora exposta...  Um misto de indignação e a repentina ideia de correr aos seus e delatar a agressão sofrida. E a mente oscilando entre a razão e a raiva, reclamando vindita. Falaria à família, o que poderiam fazer em sua defesa?  Cobrar satisfações, no caso grave da honra ultrajada, a questão poderia ser de violência, gerando tragédias. Seu pai e irmãos estariam enredados em uma vingança, sujeitos a sofrerem as consequências de um tirano poderoso; havia, ainda, a expulsão de todos da propriedade daquele monstro, ficando ao desamparo.  Aquela pobre menina-moça-mulher via-se diante de um dilema dilacerante, a tirar-lhe o sossego e a placidez da existência, que apesar de pobre era mansa e tranquila. Com imenso esforço procurou agir com naturalidade, não passando desconfianças aos seus, apenas ficou mais calada, alheia em seus tormentos íntimos, passando despercebida pelos demais. Aturdidos todos em suas funções, não deram pelo seu comportamento quieto e arredio, traumatizada em seus solilóquios a martelar as cenas de que fora vítima.

O ocorrido verificou-se em várias outras vezes, já não encontrando resistências, subjugava-se passível e resignada às volúpias do patrão. Conformava-se consigo mesma de que não adiantaria reagir, melhor que se consumasse seus intentos. Parecia que a dominava como parte de sua propriedade, em nada importando-se como ela se sentia.

Certa feita, voltando para casa com a lata d’água na cabeça, sentiu-se estranha, parecia girar sem controle, teve vertigens, a obrigando descansar. Em seguida vieram os enjoos, com insuportáveis ânsias de vômitos. Sem saber o que acontecia consigo, com a respiração ofegante, espalhou água pelo rosto e a nuca, buscando algum alívio aos incômodos. Aquilo chamou a atenção de uma roceira próxima, que se aproximou, tirando-a de suas interrogações sem respostas. – Menina, se fosse casada diria que são sinais de neném a caminho... Aquilo veio-lhe como uma bordoada, tentando conter-se para não desmoronar ali mesmo, disfarçando nas reações....É a carne de porco, neste calor, não me fez bem...logo passa !   Passados alguns momentos, refeita, prosseguiu a caminhada para sua casa. A assaltava o desespero diante a possibilidade de estar grávida.
 
Na outra tarde, agachada no seu mister de lavadeira, pressentiu a presença do homem que vinha satisfazer-se a usando; desta vez, contudo, reuniu forças e retrucou, quase em um pedido de compaixão: Por favor, acho que estou prenha, não sei o que vai ser de mim...  Diferente das atitudes bruscas anteriores, sempre calado, não teve as mesmas reações de sempre, parou para ouvi-la, dizendo compassivamente: Eu cuido disso, me aguarde, não comente com ninguém. E pela primeira vez, desde de suas infelizes investidas, não abusou dela, retirando-se.

No domingo, com a família reunida em casa, pretextando cuidar das galinhas e dos porcos, manteve-se no quintal, onde ocultava os constantes enjoos que iam e vinham. Já havia feito um chá com ervas para o estômago, o boldo, amenizava mas não resolvia o problema. Tinha as têmporas com suor frio, rusga de preocupações com seu destino caso os familiares tomassem conhecimento. Entretinha-se em seus pensamentos e foi necessário que gritassem alto para trazê-la de volta a si mesma. Anunciavam que tinham visitas e que queriam vê-la. Para mim, quem poderia ser? Pensou com ar de aborrecida, temendo trair-se com os sintomas evidentes da gravidez, foi para dentro de casa. Da cozinha ouvia as vozes na sala, não conseguindo identificar de quem fosse. Como diziam que queriam vê-la, entrou no recinto, assustando-se com a surpresa.
O Pai, servil, tomou a frente: filha este é o “seu” Honório, o proprietário destas terras, e a sua esposa, dona Lúcia, eles vieram para nos pedir que você vá para ajudá-la em casa, pois a senhora está grávida e precisa de alguém nos serviços... Antes que pudesse se recuperar do susto, o genitor praticamente respondeu por ela... Temos muito gosto que você possa ajudá-los, talvez até continuar com seus estudos. Pálida, procurando se conter do susto, estendeu a mão em cumprimentos ao casal, evitando fitar de frente seu agressor que parecia um bem comportado cavalheiro naquela encenação.  Diante aos fatos ela não tinha escolha senão seguir com eles. A despedida mais sentida foi com a mãe, juntas no quarto arrumando as suas poucas roupas percebeu que aquela matuta forte tinha sentimentos que não conseguiu disfarçar em um apertado abraço e as lágrimas dela brotaram como água represada, seriam presságios de mãe?  Ficaram de ser ver quando fosse possível, e seguiu o casal, cabisbaixa. Sua sorte entregue nas mãos daquele homem que a desonrou e de quem germinava em seu ventre sua semente.

Poucas palavras trocadas durante a viagem de charrete, o casal seguia no banco da frente e ela, atrás, os observava dando asas às suas dúvidas. Teria aquela ainda jovem esposa conhecimento das libertinagens do marido? Pareciam felizes, rindo e conversando como um casal bem consorciado, ou tudo seria, apenas, encenações para ela ?  Não acreditava, pois não se sentia com importância para tanto, parece, até, que desconheciam sua presença naquele assento traseiro.

(continua na parte 2 final)

Meu 93º texto publicado em livro de antologias de contos, a maioria pela editora CBJE, Rio de Janeiro-RJ.