A BORDO DA PEQUENA BARCA


Sinto a brisa gélida de janeiro balançar as cortinas do meu quarto, e se lançar afoita sobre o corpo pálido deitado em uma rígida cama. A porta que permanece sempre trancafiada, por não receber a visita dos amigos e entes mais próximos há alguns devastadores anos. Sinto o aroma enjoativo das centenas de flores mortas que circundam o meu modesto e desarrumado casebre de madeira. O anoitecer repentino que me transporta para as escuridões mais depressivas em imutáveis e horripilantes transtornos.

 Sinto o odor quase insuportável do sangue escuro e bastante denso, que deleita contente pelo assoalho do meu esquecido quarto. A ausência das palavras reconfortantes que poderiam ser expelidas por seres íntimos e altamente confiáveis. Sinto o vazio enlouquecedor que devora os meus órgãos lentamente, com a fúria arrebatadora de milhões de ciclones. O fim da longa estrada a metros do meu corpo cansado. O abismo à espera dos meus passos instáveis.

 Sinto o alvoroço das aves de rapina e as sanguinárias hienas, sedentas pela carne que será lançada aos seus pés enrugados. A tarde silenciosa me perfurando sem misericórdia, com seus gritos inconscientes martelando em meu mundo de loucuras. Sinto uma dor apavorante que destroça o meu coração, transformando-o em migalhas simples e irreconhecíveis. O olhar perdido no reflexo embaçado do diminuto espelho, que reflete a todos os cantos o homem à deriva em suas fracas estruturas.

 Sinto a respiração ofegante e quase finda, no transcorrer quase programado dos meus últimos e melancólicos segundos. Um corpo imponente percorrendo toda a minha sala em seus eternos passos tortos. Sinto a voz suave entrando em meus velhos ouvidos, com frases acolhedoras e promessas de um mundo melhor. A face reluzente de um senhor com barbas grossas e brancas. O sorriso cínico e inigualável do temível deus dos mortos!

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Alexsandro Menegueli
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